sábado, 4 de outubro de 2008

O nó invisível

Ele era o que chamam de um bom partido. Homem das letras, viajado e culto. Em termos de beleza, podemos dizer que não era de todo feio, agradando à maioria das mulheres. Ela era uma mulher alternativa. Arquiteta de feição forte e cativante. Atraente. Afeita a musica e ao cinema, características que ele tanto apreciava. Apaioxanada pela literatura francesa, em especial O Estrangeiro de Camus e As Empregadas de Racine.

Depois de algumas saídas, entretanto, percebeu-se que embora os dois se curtissem, isto é, curtissem a companhia um do outro, a ponto de ficarem conversando por horas até pegar no sono no sofá, lhes faltava um tipo de sentimento necessário para fazê-los se apaixonarem. Os encontros eram alegres e em sintonia. Bebiam, comiam, conversavam sobre tudo. Ela achava no The National uma lembrança do Jim Morrison, enterrado no cemitério Pere Lachaise, e não acreditava que o show seria empolgante. Ele escutava tudo sobre a banda, como se ela falasse de uma forma que refletisse as emoções que ele não sabia sentir. Falavam sobre Mallu Magalhães, Caetano Veloso, StereoLab e o mais novo Marcelo Camelo. Convidavam-se mutuamente para shows e programas, sem no entanto se beijarem. Não que não acontecia, acontecia, mas não era sempre. Acontecia uma vez ou outra, como que para premiar um dia perfeito ou para suprir uma carência ou uma fase de secura de um dos dois. Faziam-no mais pela conseqüência natural das coisas do que pela vontade imperiosa de o fazerem.

Muito embora se possa acreditar que este tenha sido um encontro de duas pessoas – e o foi –, como amantes foi, sem dúvida, um desencontro. Dizem por aí que os desencontros da vida são sempre culpa da ausência de uma tal “química” entre um homem e uma mulher, que tende a não aparecer, mesmo quando não há nada de errado naquela mulher ou naquele homem ou mesmo quando aquela é a mais bela das mulheres ou aquele é o mais inteligente dos homens.

Não. O amor, aquele sentimento que sabemos definir até que nos é perguntado, como o tempo ou a felicidade, não é produzido pela mútua contemplação da face ou da cor dos olhos. O amor é oriundo e resulta não da forma, isto é, da atração física, do exterior, mas de uma afinidade de substância, de matéria, de conteúdo. Daí talvez a explicação porque tantas vezes que conseguimos finalmente sair com a mulher que sempre desejamos, de uma beleza perfeita, perde-se a graça tão logo a conquistamos. A beleza cansa. A forma, sem a matéria é o livro de capa bonita e texto chato. A forma não influência nem minimamente na atração – animal – que faz um corpo sentir a necessidade imperiosa de se unir com outro (necessidade imperiosa de ficar junto e não atração física oriunda do tesão momentâneo devido a alguma carência ou ao teor alcóolico da caça).

Esta necessidade imperiosa de se unir, o encaixar perfeito dos dois corpos, o conforto entre eles, o apoio que a costela dá ao braço e que o outro braço dá a cabeça, significa que no corpo “daquela” mulher existe uma substância que, com implacável ânsia, identifica no corpo “daquele” homem uma outra substância com ela compatível.

E a “química” é justamente isto: a compatibilidade de dois corpos que se unem e cujo elétrons e eletrodos nascem em certos indivíduos quando encontram certos outros do sexo oposto.

A existência dessa tão almejada química não é sinal de que haverá na relação daquele homem e daquela mulher o amor eterno. O amor eterno é mais complicado do que isso. Aos fracos, nele influenciam a classe social, a perspectiva futura, a moral. Digo aos fracos, pois este tipo de influência só afeta aos inseguros, preocupados em agradar ou não desagradar alguém. Aos fortes, tais sentimentos não os atinge, daí porque se vê, para infelicidade da família, um moça linda, de estatura social altíssima, apaixonada pelo homem simples que tocou-lhe o coração.

Mas, existindo química e não o amor, seja por qualquer razão, a química se transforma numa corrente invisível presa ao calcanhar, o nó que imobiliza, e não permite que um corpo vá adiante e dê espaço para os seus elétrons iniciarem comunicação com os eletrodos de um outro corpo.

Assim, da mesma forma como se busca a química para viver um amor, ao encontrá-la, sem encontrar o amor, se esforça para perdê-la a fim de desimpedir o corpo de ir adiante quando o amor não se realiza. Sente-se raiva “daquela” pessoa quando o tempo passa sem que a corrente se solte, mas isso é só pra provar que a raiva e o amor nutrem na mesma emoção.

E talvez seja isso justamente o que tenha acontecido com aquele homem ou com aquela mulher. Ele sentindo falta dos eletrodos de uma certa mulher. Ela com a necessidade de suprir os elétrons de um certo homem. Ele lembrando do momento em seu quarto quando nas costas daquela mulher seus dedos deslizavam até o final da espinha e chegando lá se separavam lentamente como o navio sai do porto até a ponta do dedo voltar a sentir (e a causar) os choques do toque no reencontro do calor da pele na direção oposta. Ela lembrando do beijo salgado na praia – como é bom o beijo do verão carioca – que dava naquele homem antes de seguirem pelas ruas de Ipanema e almoçarem no Gula-Gula com direito a suco de tangerina e mousse de gorgonzola.

Sentiam falta daquela mulher e daquele homem que lhes supriam em tudo, menos em determinada coisa que os fez separar. E talvez o amor, o amor eterno, aquele sem ponto final, do encontro entre dois corpos, com química e com ânsia implacável, com conforto de um envolto do outro, seja o apaziguar integral da ânsia pela calma que só o encontro pode passar.

Enquanto não se encontra o amor eterno, ficam aquele homem e aquela mulher separados pela pressão da mente sobre a química. A única coisa os resta é sorrir e refugiarem-se na inteligência, que simulará indiferença até encontrarem em outro corpo aquela compatibilidade de substância que será a chave da corrente. Tudo isso sem pressa, pois não se pode apressar o amor. O amor será sempre amável.

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